O realismo fantástico é um conceito aplicado a inúmeras produções artísticas em que elementos da realidade, da fantasia e do sonho se misturam, gerando um todo harmônico. Fatos históricos, míticos, lendas e folclore são combinados e geram uma narrativa nova, que busca explorar outras noções da realidade recorrendo a imagens que não fazem parte da ordenação lógico-científica.
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A literatura de fantasia remonta às origens das comunidades humanas, da tradição oral de contar histórias e de narrar lugares remotos, muitas vezes imaginários, ou mesmo a um passado distante do tempo do autor. Já o que entendemos como literatura realista, segundo o autor Jorge Luis Borges, começa a se delinear apenas a partir do século XIII, com o desenvolvimento das sagas escandinavas e do romance picaresco.
Com a chegada da Revolução Industrial e as grandes modificações por ela engendradas no cotidiano europeu, consolidou-se como principal gênero literário o romance de costumes, ou seja, aquele que é ambientado em uma sociedade geralmente contemporânea ao autor, em busca de retratar e por vezes analisar os valores, crenças e contradições dessa sociedade.
A ênfase em escrever histórias ambientadas no presente foi ainda maior quando surgiram os movimentos artísticos do realismo e do naturalismo, em meados do século XIX. Essas escolas estéticas pretendiam retratar a realidade da maneira mais objetiva possível, em tentativas de explicar essa realidade recorrendo a conceitos científicos ou deterministas – o desenvolvimento da ciência, de um método científico e de novas descobertas tecnológicas foi uma grande marca do período, em um mundo cada vez mais acelerado e automatizado.
Dessa maneira, a literatura aproximou-se cada vez mais do que é categorizado como a realidade, sobrando pouco espaço para narrativas que fizessem uso de elementos que escapavam do ponto de vista lógico-científico. Contudo, com o advento das experimentações das vanguardas artísticas, na primeira metade do século XX, a arte começou a tomar novo rumo e buscar pontos de ruptura com aquilo que era considerado artístico até então, imbuída também de um desejo de modificar a realidade.
Foi em meados do século XX, portanto, que a produção literária não se satisfez em descrever a realidade – há espaço maior para uma proposta que vai além do retrato dos fatos e costumes. O termo “realismo mágico” aparece pela primeira vez em 1925, no título do livro do crítico de arte alemão Franz Roh.
Essa expressão foi incorporada em 1948 pelo venezuelano Arturo Uslar Pietri, em sua crítica literária nacional, e acabou por servir de base para um novo desdobramento do conceito: na literatura latino-americana surgiu, então, a categoria do realismo maravilhoso, cujos expoentes se encontram mais especialmente nos países de língua espanhola, entre as décadas de 1930 e 1970. Esse termo reflete também uma afirmação identitária das nações colonizadas pelos espanhóis, recorrendo a essa noção de “maravilha” utilizada pelos europeus para descrever os territórios que chamaram de Novo Mundo e transformando-a num fator diferenciador, incorporando-a à literatura latino-americana à luz de uma postura crítica referente à modernização excludente que ocorria (e ainda ocorre) na América Latina.
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Embora utilizadas como sinônimos, as categorias do realismo fantástico, realismo mágico e realismo maravilhoso não são equivalentes e existem diversos debates e divergências por parte da crítica a respeito dessas denominações.
De modo geral, o que entendemos por realismo maravilhoso está vinculado às produções literárias latino-americanas, que colhem o termo “maravilhoso” das cartas e testemunhos escritos pelos colonizadores no período das Grandes Navegações. Existe uma postura crítica dos autores do realismo maravilhoso, que pressupõe uma afirmação cultural latino-americana, tomando a realidade ou o realismo como diretamente relacionado às invenções europeias de modernização e progresso, que na América Latina se deram de maneira desigual, ou seja, a modernização modificou apenas a camada mais superficial da sociedade, deixando intactas as estruturas arcaicas de exploração e manutenção do poder coloniais. Assim, o realismo maravilhoso é uma alegoria dos múltiplos tempos da realidade latino-americana, de suas contradições e sincretismos.
Os termos realismo fantástico e realismo mágico, por sua vez, não se referem a um contexto ou movimento específico. Obras de autores diversos, como E.T.A Hoffmann e Edgar Allan Poe, e de conteúdo muito diferente entre si são costumeiramente enquadradas nessa categoria.
Mistura dos elementos (personagens, cenários, situações etc.) da realidade cotidiana com elementos de universos folclóricos, oníricos ou míticos.
Como há total incorporação desses elementos extraordinários e fantásticos, há uma naturalização de sua coexistência com a realidade objetiva.
Possíveis rompimentos com a linearidade temporal e com o princípio da causalidade.
Problematização da racionalidade.
Os grandes e mais conhecidos autores do realismo maravilhoso latino-americano são Gabriel García Marquez (Colômbia, 1927-2014) e Jorge Luis Borges (Argentina, 1889-1986). Ao lado deles, também podemos citar, entre vários outros, os nomes de Mario Vargas Llosa (Peru, 1936), Julio Cortázar (Argentina, 1914-1984) e Isabel Allende (nascida no Peru, em 1942, mas radicada no Chile).
Cem anos de solidão, obra de Gabriel García Marquez publicada pela primeira vez em 1967 e laureada com o Prêmio Nobel de Literatura de 1982, é o grande destaque do gênero. Situada em Macondo, uma “aldeia de vinte casas de barro e taquara”, a narrativa acompanha sete gerações da família Buendía, misturando eventos históricos da Colômbia, situações da vida rural, ressurreições, traços psicológicos hereditários, insônias coletivas, entre outros.
García Marquez recupera uma história da América Latina e a une às histórias que ouvia quando criança, típicas da tradição oral. Cem anos de solidão foi o primeiro best-seller latino-americano e já vendeu mais de 50 milhões de exemplares ao redor do mundo, em tradução para pelo menos 36 idiomas.
O argentino Jorge Luis Borges, por sua vez, possui uma obra extensa e escreveu também poesia. Suas Ficcções, livro de contos publicado pela primeira vez em 1944, renderam-lhe o prestígio literário internacional. As narrativas labirínticas tomam dimensões filosóficas e bem-humoradas, num jogo de espelhos que mistura o imaginário ao empírico, personagens ficcionais protagonizando situações verídicas, abolindo as fronteiras entre fato e ficção.
Também de Borges é O livro dos seres imaginários, publicado em 1957, um compilado de mais de cem monstros presentes nas obras de grandes autores, como Homero e Shakespeare, e de outros seres presentes no imaginário coletivo humano, como duendes, fadas, elfos etc.
O autor pioneiro do gênero fantástico no Brasil foi Murilo Rubião. Natural de Silvestre Ferraz, hoje Carmo de Minas (MG), Rubião nasceu em 1º de junho de 1916 e faleceu na capital mineira em setembro de 1991. Apesar da vida longeva, a obra do autor é bastante enxuta, composta de 33 contos, escritos e retrabalhados à exaustão, de maneira perfeccionista.
Rubião introduziu o realismo fantástico na literatura brasileira, em uma forma de narrar que concilia situações antagônicas e dá espaço para a existência de dragões e coelhos falantes, misturados a epígrafes bíblicas na abertura dos contos, que por vezes relatam cenários de reinos distantes, seres bizarros e mesmo paisagens do mais ordinário cotidiano.
Outro grande nome do realismo fantástico brasileiro é José J. Veiga, nascido em Corumbá de Goiás (GO), em 2 de fevereiro de 1915. Autor de contos, novelas e romances, sua obra ora se aproxima do maravilhoso, ora do absurdo ou do alegórico, abolindo as fronteiras entre as categorizações. Inserindo suas narrativas nos cenários interioranos e rurais brasileiros, Veiga apoia-se nas fabulações típicas da narrativa oral para criar novos universos fantásticos em cidadezinhas remotas, perdidas, esquecidas que são repentinamente invadidas por alienígenas, cães, bois – um mundo outrora familiar, mas cujos acontecimentos insólitos colocam em crise as personagens.
A obra Saramandaia, do autor Dias Gomes (Salvador, 1922 – São Paulo, 1999), é uma das mais famosas expressões do gênero no Brasil. Adaptada para a televisão em 1976, o que aumentou sua popularidade, Saramandaia passa-se na cidade de Bole-Bole, palco de disputas políticas entre coronéis autoritários e sonhos de liberdade, alegorias de um Brasil real governado pela truculenta Ditadura Militar. Mas o cenário é também composto das mais estranhas situações e personagens: João Gibão esconde sua marca de nascença, que são suas asas, e é capaz de fazer voltar o tempo; Dona Redonda é uma mulher gulosa que come até explodir; o coronel Zico Rosado solta formigas pelo nariz; o professor Aristóbulo vira lobisomem; Seu Cazuza vê o coração sair literalmente pela boca quando fica nervoso; e os insones de Bole-Bole podem ver figuras históricas como Tiradentes ou D. Pedro I passeando pela cidade no meio da madrugada.
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O termo realismo fantástico apareceu pela primeira vez no âmbito das artes visuais. Foi proposto por Franz Roh, em 1925, em sua crítica de arte a respeito de obras entendidas como pós-expressionistas.
As pinturas categorizadas como realismo fantástico ou mágico tendem a se distanciar de temas políticos ou sátiras, representando certo mistério ou segredo latente em suas telas, uma visão objetiva da vida imbuída de qualidades intangíveis. Diferentemente dos surrealistas, os pintores do realismo fantástico não estão tão interessados nos processos inconscientes ou subconscientes, mas procuram o fantástico na própria realidade. Assim, elementos insólitos são retratados como parte da realidade objetiva, como se realmente existissem.
Artistas como os alemães Karl Hofer (1878-1935), Franz Radziwill (1895-1983) ou mesmo os últimos trabalhos de Max Beckmann (1884-1950) produziram exemplos do realismo fantástico proposto por Roh. O holandês Albert Carel Willink (1900-1983) também moldou os momentos iniciais do realismo fantástico, embora preferisse o termo “realismo imaginário” para melhor definir suas obras. No Brasil, o grande expoente do movimento foi Mario Gruber (1927-2011).
Diferentemente do gênero fantasia, que cria um universo próprio, o realismo fantástico implica a fusão de elementos do cotidiano lógico-científico, familiar ao espectador, a elementos próprios do folclore, da mitologia ou do sonho. Um bom exemplo é O labirinto do Fauno, filme lançado em 2006 e dirigido por Guillermo del Toro. O tempo da narrativa é a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), recuperando um momento de agruras e horrores da Espanha a partir do olhar de Ofélia, cujo padrasto é um violento oficial de alta patente do exército.
Com a mãe doente e rodeada pelo ambiente brutal da guerra, reforçado pela figura do padrasto, Ofélia encontra na casa para onde se mudou com a família um labirinto que a leva a conhecer uma estranha criatura e um outro mundo.
Também de Guillermo del Toro é o vencedor do Oscar A forma da água, lançado em 2017. Protagonizado por Elisa, uma faxineira muda, a trama se passa no período da Guerra Fria. Elisa é encarregada pela limpeza de um laboratório secreto norte-americano e acaba se interessando por uma insólita criatura meio humana, meio aquática, mantida em cativeiro para potenciais experiências contra os soviéticos. Para se comunicar com a criatura fantástica, Elisa faz uso da música e da linguagem de sinais e os dois seres acabam se apaixonando.
O longa brasileiro Bacurau, lançado em 2019 e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um bom exemplo nacional de realismo fantástico no cinema. Bacurau é um pequeno povoado no oeste do estado de Pernambuco e a narrativa é centrada nesse cenário e em suas personagens. O filme tem início com o velório de Carmelita, a grande matriarca da cidade. Pouco tempo depois, as personagens percebem que Bacurau desapareceu do mapa e dos sistemas de GPS. Começam a aparecer drones e cadáveres. Pouco a pouco, situações insólitas revelam que a cidade está sendo atacada e a realidade sertaneja é modificada.
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Questão 1 - (UFG) Há diversas possibilidades de compreensão do fenômeno fantástico em Literatura. Tzvetan Todorov, em seu livro Introdução à literatura fantástica, afirma: “Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico.”
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 31.
Nos contos de Murilo Rubião, o efeito fantástico, tal como afirma Todorov, efetiva-se por
empregar as experiências incomuns das personagens e o tempo da narrativa para criticar a realidade política de sua época.
indeterminar o desfecho, permitindo ao leitor uma interpretação excêntrica da história narrada.
ampliar a fronteira da realidade, introduzindo elementos extraordinários no cotidiano narrado.
construir um horizonte maravilhoso entre ficção e realidade, sugerindo uma deturpação dos fatos históricos.
explorar situações absurdas que estabelecem uma distorção entre o espaço da narrativa e as ações das personagens.
Resolução
Alternativa C. O realismo fantástico mescla elementos extraordinários ao universo cotidiano, ampliando as fronteiras da realidade.
Questão 2 - (PUC-RS) “Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava. Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente. [...] Pediu o oceano. Não fiz nenhuma objeção e embarquei no mesmo dia, iniciando longa viagem ao litoral. Mas, frente ao mar, atemorizei-me com o seu tamanho. Tive receio de que a minha esposa viesse a engordar em proporção ao pedido, e lhe trouxe somente uma pequena garrafa contendo água do oceano. No regresso, quis desculpar meu procedimento, porém ela não me prestou atenção. Sofregamente, tomou-me o vidro das mãos e ficou a olhar, maravilhada, o líquido que ele continha. Não mais o largou. Dormia com a garrafinha entre os braços e, quando acordada, colocava-o contra a luz, provava um pouco da água. Entrementes, engordava.”
(RUBIÃO, Murilo. “Bárbara”.)
Com base no trecho e em seu contexto, assinale a alternativa incorreta:
A reciprocidade no afeto parece ser uma marca do casal retratado no trecho.
O marido demonstra não se surpreender com os pedidos de sua esposa, e este comportamento provoca um estranhamento no leitor.
A natureza insólita e ambígua da relação do casal é um elemento que reflete a adesão de Murilo Rubião a uma estética relacionada à literatura fantástica.
O trecho apresenta algumas construções inusitadas, que quebram a lógica de causa e efeito, como, por exemplo: “pedia e engordava”.
Murilo Rubião tem uma produção literária centrada mais em contos do que em romances.
Resolução
Alternativa A. Enquanto o marido está engajado em atender os constantes pedidos da esposa, esta lhe responde com pouco afeto e novos pedidos: “Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente.”
Famoso poeta brasileiro, fez parte da segunda geração romântica.
O predicado é um termo essencial da oração que faz uma afirmação sobre o sujeito.
Indica uma condição em relação a um verbo, adjetivo ou outro advérbio.
Podem provocar efeitos indesejados na comunicação, entre eles a ambiguidade.
As palavras aportuguesadas são aquelas de origem estrangeira que foram adaptadas às normas ortográficas da língua portuguesa.