Em seus 82 anos de vida, Manuel Bandeira pôde testemunhar a poesia na literatura brasileira do século XX, sendo um de seus principais representantes.
Certa vez, Manuel Bandeira, em uma atitude de extrema modéstia, chamou-se de “poeta menor”, cometendo contra si mesmo uma grande injustiça. Bandeira, um dos pilares da fase heroica do modernismo no Brasil, certamente é um dos maiores representantes da poesia em verso livre na literatura brasileira. Em seus poemas predomina uma temática que contempla o prosaico, o corriqueiro, permeados por doses exatas de lirismo que fizeram de Bandeira um dos mais aclamados escritores de nossas letras.
Grande apaixonado por música e arquitetura, a poesia surgiu na vida de Manuel Bandeira por acaso: a saúde frágil do adolescente que sofria de tuberculose afastou-o da vida agitada e cheia de aventuras tão comum aos jovens e levou-o à introspecção, descobrindo então o prazer de fazer versos sem ter sido antes um leitor voraz. A sensação iminente de morte fez com que sua obra fosse marcada por temas como a solidão, a angústia existencial, as reminiscências da infância e o isolamento advindo da doença. Embora frágil, viveu 82 anos, e sua extensa obra dá um testemunho da poesia brasileira no século XX.
Para que você conheça um pouco mais sobre a obra do poeta que um dia ousou criar seu próprio paraíso – é dele o poema Vou-me embora pra Pasárgada -, o sítio de Português selecionou cinco poemas de Manuel Bandeira para você conhecer toda a beleza dos versos do poeta que tão bem combinou lirismo e cotidiano. Boa leitura!
Ao lado de Mário e Oswald de Andrade, Manuel Bandeira compôs a tríade modernista, representando a fase heroica do modernismo brasileiro
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Arte de amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
O anel de vidro
Aquele pequenino anel que tu me deste,
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…
Assim também o eterno amor que prometeste,
- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.
Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, –
Aquele pequenino anel que tu me deste,
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…
Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste…
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste…
Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
O Último Poema
Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação