A dupla negativa se caracteriza como uma ocorrência linguística adequada, em se tratando do padrão formal da linguagem
Há em Tabacaria, cujo autor é ninguém menos que Fernando Pessoa, um exemplo de expressão que representa o ponto chave da discussão que ora nos propomos a levantar. Observe:
TABACARIA
Não sou nada.
[...]
Trata-se de uma ocorrência muito comum no nosso dia a dia. Os usuários da língua, no entanto, pensando logicamente, sempre se sentem questionados: quando o poeta afirma não ser nada, significa que ele é alguma coisa?
Essa mesma lógica poderia ser aplicada a exemplos cotidianos, tais como “eu não vi ninguém” (significaria “eu vi alguém”), “eu não quero nada” (significaria “eu quero alguma coisa”), “eu não pedi nada” (significaria “eu pedi alguma coisa”), entre outros, no entanto não é bem assim que devemos compreender o verdadeiro funcionamento da língua.
Em todos os casos analisados, a negativa aparece antes do verbo, razão pela qual inferimos que não temos de afirmar antes de negar, a menos que se trate de uma variante que normalmente ocorre na língua – as chamadas variações diatópicas, cujas mudanças se operam no nível da sintaxe. Tais ocorrências assim se manifestam: “sei não”, “vi não”. Dessa forma, constata-se que a negação aparece depois do verbo. Cabe ressaltar que tais construções estão corretas, mas decorrem do aspecto não convencional da língua, demarcado, sobretudo, pela oralidade, na qual podemos atestar o emprego enfático, em que a segunda negativa prevalece sobre a primeira, como em: “não sei, não” / “não vi, não”.
Dadas tais considerações, devemos concluir que mediante o padrão formal da linguagem, pelo fato de a negativa anteceder o verbo, esta se torna uma ocorrência perfeitamente aceitável.
Assim, convencionalmente, afirmamos que construções do tipo “vi ninguém” revelam uma forma inadequada, dada a não ocorrência da dupla negativa (“não vi ninguém”).